Conferência de Almirante no Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore
Segunda-feira, à noite, na Escola Nacional de Música, para membros do Congresso Brasileiro de Folclore e outros interessados, Almirante fez uma palestra sobre o samba carioca. Palestra simples, que, modestamente, ele apresentou como a contribuição despretensiosa de um mero curioso do assunto, mas que, como logo foi verificado, resultou em uma colaboração magnífica para o conhecimento da história e evolução da nossa música popular. Foram minutos agradáveis, principalmente pelo tom de que se revestiu a exposição, clara e leve, ainda ilustrada pela participação de vários dos melhores e autênticos sambistas, autores e intérpretes.
Na ocasião, Almirante defendeu o seu ponto de vista, já conhecido, de que "o samba carioca não nasceu no morro". E, ao fazê-lo, trouxe a confirmação e a palavra autorizada de alguns daqueles que acompanham o samba desde os primeiros passos, como Pixinguinha — o grande Pixinga, João da Baiana — com o laço de fita preta ao colarinho e fazendo a marcação no mesmo pandeiro que recebeu de Pinheiro Machado em 1903, Heitor dos Prazeres — com os olhos miúdos dançando atrás dos óculos sem aros e dedilhando as cordas do mesmo cavaquinho "pega-janta" dos saudosos tempos da casa da tia Ciata.
Durante a palestra de Almirante, tiramos as notas que se seguem.
A palavra "samba" designando o gênero de música popular carioca surge em agosto de 1916, em Pelo telefone. Mas o ritmo já veio de muito antes, em meio às diversas designações.
Almirante recorre aos arquivos, à procura de exemplos. Que ele próprio canta, enquanto Arlindo, Darli e Araújo fazem o fundo musical, de cavaquinho e violões. De 1915, uma polca:
Ai, ai, é da minha
A urucubaca da miudinha
Ai, ai, é da grossa
A urucubaca da perna grossa
Por volta de 1906, uma chula motivo do cordão Filhos da Jardineira:
Não deixa tirar
A rosa da roseira
Ai, ai, ai
Formosa jardineira
De 1905, uma cantiga popular das ruas, sem classificação:
Eu vou beber
Eu vou me embriagar
Eu vou fazer barulho
Para a polícia me pegar
E até de 1889, na peça teatral O bedengó, o tango brasileiro Terra do vatapá:
Eu sou da terra do vatapá
Moqueca, ioiô, moqueca, ioiô
Lá no fundo do sertão
Tem uma moça bonita
Realmente, certifica-se que o tango brasileiro de 1889, a cantiga não classificada de 1905, a chula de 1906 e a polca de 1915, seriam sambas nos dias de agora.
A toada já existia, portanto, às vezes, em ritmo um pouco diferente, mais ligada às formas de denominações estabelecidas. E a sua apresentação era feita, geralmente, por ocasião das festas das baianas — que estas eram muitas, aqui no Rio — durante os presépios e lapinhas, as comemorações de Natal até Reis, quando os diversos ranchos saíam à rua para a troca de cumprimentos em evoluções próprias. Então, formava-se o "samba", a roda em que se batia o "baiano" ou "rojão", dançado ao som dos violões e cavaquinhos que ponteavam, com os intervalos cheios pelo solo do canto.
E Almirante lembra das músicas de 1906, mais ou menos:
Eu bem dizia, ó baiana
Dois metros sobravam
Saia de baião, babadão
Meio metro dava
E observa a mesma cadência do samba de hoje.
Ora, as baianas no Rio moravam pela Cidade Nova, principalmente. Entre elas, as mais célebres: Gracinda e Bibiana, em São Domingos; Ciata, na rua da Alfândega, Teresa — Tetéia, na rua Luiz de Camões. As outras, em Senador Pompeu, Barão de São Félix e adjacências. Assim, a música de origem nas suas cerimônias não veio do morro.
Aconteceu, entretanto, que por causa das ruas estreitas — como eram aquelas (e algumas ainda o são) — o samba das baianas não despertou maior interesse senão quando a tia Ciata se mudou para o 117 da rua Visconde de Itaúna, junto à praça Onze de Junho, nas proximidades da qual também havia, como motivos de atração, diversas sociedades recreativas — e carnavalescas, por excelência — como Cananga do Japão, Paladinos da Cidade Nova, União dos Amores, entre outras, e, mais, a casa sempre freqüentada de um macumbeiro célebre, pai Anselmo.
Na casa da tia Ciata, em tono de 1916, reuniam-se os mais famosos autores e intérpretes da música popular da época, aqueles que iriam ser os responsáveis pelo novo gênero, dando-lhe a designação e forma definitiva.
E Almirante lembra alguns nomes, todos de gente de longe do morro: João da Mata, tenente Hilário, Germano Lopes da Silva, Ernesto dos Santos (o Donga), Marinho ("Marinho, que toca!..."), José Luís de Morais (o Caninha) e, principalmente, José Barbosa da Silva (o Sinhô), além dos citados.
Foi daí, da casa da tia Ciata, firmado por Ernesto dos Santos — o Donga — e Mauro de Almeida, que saiu Pelo telefone, o primeiro samba carioca, sob essa denominação, oficialmente:
O chefe da folia
Pelo telefone, mandou-me avisar
Que com alegria
Não se questione, para se brincar
Ai, ai, ai
Deixa as mágoas para trás
Ó rapaz
Ai, ai, ai
Fica triste, se és capaz
E verás
Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso
Roubar amores dos outros
Depois, fazer teu feitiço
Oi, a rolinha, sinhô, sinhô
Se embaraçou, sinhô, sinhô
Caiu no laço, sinhô, sinhô
Do nosso amor, sinhô, sinhô
Porque este samba, sinhô, sinhô
De arrepiar, sinhô, sinhô
Põe a perna bamba, sinhô, sinhô
Mas faz gozar
Mais uma vez, Almirante observa a semelhança de Pelo telefone às músicas da época, das quais sofreu a influência, inevitável, resultando como que em uma colcha de retalhos: até a música sertaneja, que para o Rio de Janeiro fora trazida por João Pernambuco, em 1913, oferece motivos na última parte:
Oi, a rolinha, sinhô, sinhô
Nada de morro, portanto.
Evidentemente, o novo gênero não foi logo fixado. Ainda em 1920, por exemplo, um autor dos méritos de Eduardo Souto chamava samba a esta sua música, muito tocada e cantada, autêntica marchinha carioca:
Levanta o pé
Esconde a mão
Eu quero ver
Se tu gostas de mim ou não
Mas em seguida a Pelo telefone (também chamado Roceiro) e até nas discussões em torno do seu aparecimento, foram aparecendo novas composições, ao seu gênero, que assim foi tomando forma e assumindo o tipo determinado. Nestes primeiros passos, trazidos por aqueles nomes citados linhas atrás, o samba nada teve com o morro, em várias ocasiões, animado por tantos e tantos autores célebres, como J. F. Freitas, Eduardo Souto, Cardoso de Menezes, Bequinho, Luís Nunes (o Careca), Freire Júnior, Joubert de Carvalho, Costinha, Romeu Silva, Duque, Wantuil de Carvalho, Ary Kerner, Lamartine Babo, Noel Rosa, Ari Barroso e muitos outros.
— Admita-se, portanto, que o samba carioca não nasceu no morro. Não porque houvesse algum mal se assim tivesse sido. É que não foi , apenas...
Almirante. "O samba carioca não nasceu no morro". Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1951
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